Coação, manipulação e medo. Essa é uma triste realidade vivenciada por milhares de crianças e adolescentes vítimas de exploração e violência sexual. Um retrato cruel traduzido em números: 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. A maioria possui entre 7 e 14 anos. O país está entre um dos primeiros no ranking internacional com mais casos de exploração sexual de crianças e adolescentes. Foram 175 mil casos entre 2012 e 2016, de acordo com dados de denúncias recebidas pelo Disque 100.
Em média, dos casos denunciados no país, 40% de crianças têm entre 0 a 11 anos, 30% de 12 a 14 anos e 20% de 15 a 17. Já em Campinas, em 2017, a violência sexual vitimou 274 crianças e adolescentes de acordo com as notificações da Secretaria Municipal de Saúde. Destes, 65% são meninos e meninas de 0 a 11 anos e 35% de 12 a 17 anos. Já os casos de violência sexual atendidos pelo Programa Iluminar, do Departamento de Saúde da Secretaria de Saúde de Campinas, que faz parte da rede de cuidados às vítimas de violência sexual do município, apontam que 70% ocorrem contra crianças e adolescentes de 0 a 19, sendo 136 crianças de 0 a 9 anos e 151 de 10 a 19 anos.
Os dados são assustadores. Para além deles, assusta também a ausência de debates na sociedade e de engajamento para proteger e prevenir situações de violação de direitos de crianças e adolescentes. “A gente precisa quebrar esse tabu, do medo de falar sobre isso. Porque enquanto esse medo existir, as crianças e os adolescentes vão continuar sendo abusados e estuprados, como mostram as estatísticas”, alerta Airton Pereira Junior, Conselheiro Tutelar da região Noroeste em Campinas/SP.
A sexualidade é um aspecto humano que deve naturalmente ser desenvolvido nas diversas fases da vida. Ao ser violada, afeta gravemente as vítimas, principalmente quando se trata de uma criança ou adolescente por serem mais vulneráveis e não terem clareza e maturidade para identificar e enfrentar as situações de violência.
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“Sabemos que a violência sexual contra crianças e adolescentes é a forma de violência mais velada e que se estrutura de modo bastante complexo, e, portanto, a mais difícil de ser identificada”, explica Fabiana Taioli, Coordenadora Técnica SESF¹ do Centro Promocional Tia Ileide (CPTI). O CPTI é um dos parceiros² do Programa de Enfrentamento a Violências da Fundação FEAC, entre outros que integram a rede de atendimento da proteção social básica e de média complexidade3 em Campinas. Para ela, o prejuízo no desenvolvimento emocional pode afetar várias áreas da vida das vítimas de violência sexual e sua dimensão é imensurável. “Por isso, a importância de combatermos esta violência, inclusive repensando os modelos relacionais que reforçam esta prática em nossa cultura e sociedade”, completa.
“É preciso garantir a toda criança e adolescente o direito ao desenvolvimento de sua sexualidade de forma segura e protegida, livres do abuso e da exploração sexual.” Ministério do Desenvolvimento Humano
“Além das estratégias de intervenção com as famílias nos casos de violência sexual, pensadas de forma individualizadas considerando as especificidades e dinâmica familiar, também realizamos ações de sensibilização, mobilização e informação sobre o tema”, acrescenta Fabiana. O CPTI investe nas ações preventivas junto da comunidade e também em parceria com outros serviços do território.
Segundo Lincoln Moreira, líder do Programa Enfrentamento a Violências, “o trabalho da Fundação FEAC nesta temática se torna importante na medida que reconhecemos que esta problemática é uma grave violação de direitos, e devemos contribuir ajudando na mobilização da sociedade para erradicar este fenômeno perverso presente no município de Campinas”.
18 de maio
Instituída pela Lei 9.970/2000, a data é marcada pelo “Caso Araceli”, ocorrido em 1973, na cidade de Vitória (ES). A menina de apenas 8 anos foi sequestrada, estuprada e morta por jovens de classe média alta. Apesar de ter tido todos os seus direitos violados, o crime ficou impune. Por isso, como uma estratégia de combate à violência sexual contra crianças e adolescentes, a data serve para informar, sensibilizar e mobilizar a sociedade a participar da luta em defesa dos direitos sexuais de crianças e adolescentes.
Todos os anos, o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual realiza a campanha “Faça Bonito. Proteja nossas Crianças e Adolescentes”.
Em Campinas, o CMDCA, junto da Comissão de Enfrentamento da Violência Doméstica contra Criança e Adolescente, tem como atribuição abordar, orientar e realizar o enfrentamento a esse fenômeno. Diferente dos anos anteriores, 2018 conta com uma programação em que todas as regiões serão impactadas com ações descentralizadas em alusão ao dia 18. Leila Sarubbi, presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Campinas, conta que essa campanha e o 18 de maio representam um momento muito importante para mobilizar a população. “Todo material produzido serve para que as pessoas possam se apropriar dessas informações e identificar e denunciar os casos”, reforça.
Para Natália Valente, técnica de referência do Programa Enfrentamento a Violências, “é a hora de contribuir com a mudança dessa realidade, aproveitamos o dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e de Adolescentes, que deve ser um dia de manifestações, divulgação desta problemática e luta para o enfrentamento dessa violência, entendendo que essa violação de direitos deve ser combatida de forma propositiva, provocando a sociedade e responsáveis a atuarem todo o ano, com ações eficazes para seu efetivo enfrentamento”.
Fenômeno complexo
Entre os mais de 84 mil casos de violação de direitos registrados no Brasil em 2017 (contra mais de 76 mil em 2016), recebidos pelo Disque 100, estão negligência (73,07%), violência psicológica (47,07%) e violência sexual (24,19%). Dentro do contexto de violência sexual existem dois tipos de violações: o abuso e a exploração. A diferença entre os dois é que o primeiro é voltado para a satisfação de desejos, sem fins comerciais, e o segundo envolve gratificação, mercantilização e muitas vezes pode estar relacionado a redes criminosas.
As causas são diversas: sociais, culturais e econômicas. Violência, negligência e abuso de poder são alguns fatores de um conjunto contextual que levam à violência sexual. Os agressores são adultos, em sua maioria homens, que usam a relação sexual para satisfazerem desejos e/ou obterem vantagens, relacionada a fins comerciais ou não. Existem diferentes tipos de exploração sexual, agenciada ou não: trocas sexuais, pedofilia, prostituição, pornografia, turismo sexual e tráfico de pessoas.
Por meio de relações de poder, crianças e adolescentes são coagidos, violentados e explorados. As formas de abuso de poder vão desde o uso da intimidação física e psicológica, manipulação, chantagem, ameaça, entre outras.
Tanto no país quanto no município, a maior parte dos casos de violência sexual envolve um familiar. Em Campinas 58% acontecem nas residências. Verônica Gomes Alencar, médica coordenadora da Rede Iluminar Campinas, explica que “os autores geralmente são pessoas com relação familiar. O local de ocorrência dessas violências costuma ser a residência de pessoas que deveriam proteger essas crianças e adolescentes. Nesse sentido, conseguimos ver o quanto esses meninos e meninas estão expostos à violência sexual dentro da sua própria casa”, disse.
Outro dado preocupante é do estupro. Nos primeiros três meses de 2018 houve um aumento de 34% no índice de estupro na cidade de Campinas, de acordo com dados do Sistema de Notificações de Violências (SISNOV). Do total de casos recebidos de todas as idades, 66% representam crianças e adolescentes. “ Geralmente alguns adultos acham que com meninas de 11, 12 e 13 anos já estão aptas a ter relação sexual. E na verdade isso é considerado legalmente como estupro de vulnerável, mesmo se houver consentimento”, relata o conselheiro tutelar Airton.
“A cultura machista, homofóbica, entre outros preconceitos, geram o abuso sexual e o estupro. A cultura do estupro existe e é acompanhada de uma série de valores que precisam ser modificados”, declarou o conselheiro. Os números confirmam: cerca de 80% das crianças e adolescentes vítimas são do sexo feminino em Campinas.
A respeito da transmissão transgeracional de violência “o que mais preocupa é que ao longo do tempo vai se consolidando essa cultura do estupro e do machismo e as meninas vão crescendo com medo, aprendendo a controlar o corpo, se subjugando ao machismo na família, nas relações afetivas na adolescência, no casamento e nas relações de trabalho depois de adultas e de outros aspectos sociais. Já os meninos crescem sem responsabilidade em relação a essas questões, consolidando a prática do machismo e da violência na relação com as mulheres”, aponta Verônica.
Subnotificação: abusos não identificados
Estima-se que existam aproximadamente 500 mil crianças e adolescentes vítimas da exploração sexual no Brasil. Porém, apenas 7 em cada 100 casos são denunciados. Esses dados ilustram outra triste realidade: a da subnotificação. De acordo com Leila Sarubbi do CMDCA, informações recentes apontam que para cada caso denunciado existem cinco casos não notificados. Ela indica que “existe um preconceito e um certo receio em relação a denúncia de casos de violência sexual”.
Em Campinas, é por meio do SISNOV/SINAN, Sistema Intersetorial e Interinstitucional de Notificação sobre Violências que são registrados os casos suspeitos ou confirmados dos diversos tipos de violência. Do total das notificações no município, 22% representam os casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. O sistema tem como objetivo contribuir para interromper o ciclo das violências, pois além de registrar dados, as informações e indicadores gerados apoiam o desenvolvimento de políticas específicas voltadas à prevenção e redução de riscos e danos associados às violências.
Em sua maioria, as vítimas estão em situação de vulnerabilidade e risco social, porém também acontece em outros contextos. “Em certos âmbitos a vergonha e status velam as violências e são silenciadas entre quatro paredes”, avalia Airton. As regiões que mais registram ocorrências em Campinas são Sul (26%), Noroeste (18%), Norte (16%), Sudoeste (15%) e Leste (10%). A maior parte dos casos são notificados pelas unidades da Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos e Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM, na Unicamp).
“Existem regiões da cidade que têm uma situação muito fragilizada em relação à exploração sexual especificamente”, ressalta Leila. A exploração sexual é umas das formas de violência mais complexas e com menor índice de notificação, pois envolve uma série de fatores, desde envolvimento de redes criminosas até a desinformação. “O Conselho Sudoeste atua no Jardim Itatinga, região de prostituição, onde adolescentes chegam com documentos falsificados, oriundos de outros Estados, em situação de exploração sexual”, aponta Carleides Costa, Conselheira Tutelar da região Sudoeste, que salientou ainda que dentro das famílias em situação de vulnerabilidade social existem casos onde “o responsável deixa o vizinho tocar na filha por um prato de comida, e isso também configura exploração, porém as pessoas não entendem que é um crime”.
Muitas situações ocorrem no âmbito familiar e muitos casos não chegam a ser denunciados por vários motivos: desconhecimento de como ajudar, medo de se expor, não saber identificar uma situação como violenta ou muitas vezes atribuir normalidade a comportamentos suspeitos. Por isso, é preciso urgentemente acabar com o paradigma existente em relação à naturalização da violência. Reforçada por comportamentos que silenciam e tornam naturais práticas desumanas e as reproduzem, a convivência rotineira com situações de violência gera complacência social.
“A família muitas vezes não acredita na vítima. Por isso, o serviço tem um papel fundamental de ir trabalhando com essa criança ou adolescente e com a família, apontando os sinais da violência”, sugere Carleides. Em Campinas, geralmente os casos de violência sexual contra crianças e adolescente têm um fluxo que começa pelo atendimento na saúde, depois boletim de ocorrência e em seguida para os serviços que notificam o Conselho. “Chamamos a família, fazemos o atendimento, acompanhamos o atendimento na saúde e a depender do caso vai para o SESF ou para a Saúde”, orienta Carleides. Na área de assistência o fluxo começa no CREAS, que encaminha para os serviços dos SESF ou do PAEFI para o acompanhamento e trabalho.
Já na Rede Iluminar o fluxo de atendimento às vítimas envolve primeiramente os serviços de urgência e emergência. “Antes de completar 72h do ato sofrido, a vítima recebe toda medicação preventiva em relação a doenças sexualmente transmissíveis e gravidez resultante do estupro, por exemplo. Há ainda o atendimento na saúde mental. Se passar desse prazo de 72h, o encaminhamento é direcionado para as unidades de saúde básica. Acompanhamos também a família e notificamos no Conselho Tutelar e no SISNOV”, explica Verônica.
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” Constituição da República Federativa do Brasil – Art. 227
De acordo com a cartilha da Visão Mundial, organização não-governamental que atua na prevenção de casos, o combate exige atenção aos sinais de violência e busca por informações sobre onde fazer denúncias e quais os serviços disponíveis. Entre as dicas para fazer enfrentamento a violências, avaliar normas cotidianas que protejam as crianças e adolescentes, orientá-las e contribuir na geração de consciência social, compartilhando informações com vizinhos, amigos e famílias.
A prevenção é um caminho para reduzir as tristes estatísticas e mais do que tudo, cuidar do futuro dessas crianças e jovens. Airton defende que a orientação sexual, por exemplo, é uma medida que colabora com a prevenção. “A escola tem um papel importante. Com uma boa didática, adequada a cada idade, é possível falar sobre questões de sexualidade com todos, incluindo crianças, pois assim é que cada uma será capaz de perceber e evitar situações de violência sexual”.
Verônica completa que “é preciso criar pessoas solidárias e que dentro das escolas e nas famílias exista a discussão de gênero, que é o ponto mais importante para uma cultura de paz, de uma sociedade mais justa e igualitária, onde homens e mulheres têm direitos iguais e onde as crianças e adolescentes venham a ser tratados como sujeitos de direitos”.
Além da educação sexual nas escolas e quebra de tabus dentro das famílias ao abordar a temática, o desenvolvimento de políticas públicas é crucial, apontam especialistas. “O que leva um responsável a explorar o próprio filho para ter dinheiro? A falta de uma política pública de trabalho e renda. Tudo esbarra nas políticas públicas. Quando eu tenho crianças fora da escola, elas estão vulneráveis e correndo risco de abuso sexual. Quando não tenho centros de saúde suficientes, eu tenho pessoas que não estão sendo orientadas de forma adequada com relação a essas violações”, esclarece Airton. “Família desempregada, falta de moradia, entre outros fatores… Se essas crianças e famílias não têm acesso aos serviços básicos, eles estão expostos a situações de risco, como a violência sexual”, complementa Carleides.
Violação de direitos humanos e denúncia
O principal canal para denúncias é o Disque 100, serviço da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) que as examina e encaminha aos serviços de atendimento, proteção e responsabilização do Sistema de Garantia de Direitos da Infância e Adolescência (SGDCA). As situações são normalmente endereçadas a Conselhos Tutelares, Ministério Público e órgãos da segurança pública – Delegacias de Proteção à Criança e ao Adolescente, Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal. Os dados gerados com base nos registros feitos revelam o panorama dos casos de abuso e exploração contra crianças e adolescentes e ajudam a orientar ações de combate e prevenção.
“Temos esse papel enquanto cidadão, enquanto adultos responsáveis em proteger crianças e adolescentes. O que pedimos sempre à população é que toda vez que houver uma suspeita ou efetivamente perceba que a criança está sofrendo qualquer tipo de violência, deve denunciar”, destaca Leila. Ela cita também o aplicativo gratuito Proteja Brasil, iniciativa da UNICEF e da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania, plataforma integrada com o Disque 100 que permite ainda localizar os órgãos de proteção nas principais capitais e esclarece sobre as diferentes violações.
O Conselho Tutelar de cada região também recebe denúncias. Airton chama a atenção: “É um dever de todos, não só da família, mas da sociedade como um todo. Basta uma suspeita, não precisa confirmar, se apenas suspeitar deve-se fazer a denúncia pelo disque 100 ou procurar o Conselho. A gente colhe a denúncia e mantém o sigilo”.
Embora recentemente tenham sido sancionadas novas legislações, ainda há pontos críticos. “O sistema de proteção a crianças e adolescentes e de responsabilização dos autores é falho. Dificilmente consegue se responsabilizar o autor. Acaba que na verdade as crianças é que são punidas e muitas vezes têm que sair de casa, vão para abrigos, por exemplo. Já o autor do crime continua solto e violentando outras vítimas. Na conjuntura atual é preciso fazer com que a polícia investigue e a justiça julgue o mais rápido possível”, pontuou Verônica.
Programa Enfrentamento a Violências
O programa Enfrentamento a Violências é uma iniciativa da Fundação FEAC que investe na mitigação dos impactos das violências e no enfrentamento para romper os ciclos que as perpetuam com objetivo de promover o bem-estar e a cultura de respeito, empatia, tolerância e paz.
Fontes
- Pesquisa Comitê Nacional de Enfrentamento à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e ECPAT Brasil, em parceria com a SNDCA, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), Polícia Rodoviária Federal e ChildHood.
- Estudo Ipea com dados de 2011 do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan).
- Ministério dos Direitos Humanos- Disque 100
- Estudo Fechando a Brecha: Melhorando as Leis de Proteção à Mulher contra a Violência, do Banco Mundial.
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